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Solitude, delírio e isolamento: provocações a partir do filme ‘Náufrago’

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CINEMA E PSICANÁLISE

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem: “Solitude, delírio e isolamento: Provocações a partir do filme ‘Náufrago’”

Folheto da coluna Cinema e Psicanálise
Folheto da coluna Cinema e Psicanálise

É sabido que a experiência de assistir a um filme é multifacetada, envolve a visão, a audição, e, por que não dizer? O tato. As sensações corporais, assim como sentimentais, estão em constante processo de amalgamento na construção e reconstrução da psiquê do sujeito/espectador. Tal é a complexidade da apreciação artística que, não raro, é relegada a um mero “passar de olhos” sobre um filme naqueles noventa a cento e vinte minutos, em média.

Nesses meandros, de igual forma, as elucubrações e reflexões são igualmente estimuladas, principalmente diante do teor etéreo assimilado pelas produções artísticas, direta ou indiretamente. Em algum momento de suas vidas, até mesmo em tom de pilhéria, as pessoas são confrontadas com a ideia:  o que fariam e o que levariam à uma ilha deserta? 

Essa foi a realidade imposta sem a escolha de bagagem ao personagem de Tom Hanks no filme ‘Náufrago’ de 1999. Na trama, Chuck Noland (brincadeira com o nome?)[1] é o funcionário da Empresa de Correios norte-americana, a Federal Express/Fedex, e quando seu avião sofre um acidente ele se vê como o único sobrevivente em uma ilha desabitada, e, aparentemente, inacessível às buscas a partir da angulação do raio de queda do avião.  

Naquele contexto, um indivíduo eminentemente urbano se vê exposto às intempéries da natureza, da conscientização de sua fragilidade em paralelo à força do próprio circundar terrestre, alheio a sentimentos, necessidades (emotivas e práticas), e à sua própria sorte. Esta é a crueza do universo, que apenas gira compondo a passagem do tempo, mecânico, eficaz, austero e contínuo, assim como o envelhecer como transposição ao passo seguinte mais próximo da finitude. 

Decerto, esse “mergulhar”, inolvidavelmente descortina outras derivações naturalistas do ponto de vista filosófico e de autodescoberta, quanto há um confrontamento a realidades ou situações não esperadas.

Reações extremas de personagens em situações igualmente intensas foram retratadas a partir de filmes “sobrevivência”, exploitation, de cadeia. A partir de enredos mais comerciais, ou daqueles imersos em tons mais existencialistas e reflexivos como nos títulos Pappilin (1973) e O homem de Alcatraz (1962). Em ambos os roteiros, a questão da segregação – naqueles recortes, como cumprimento penal imposta pelo sistema legal – contemplamos as formas de escapismo e o modo de lidar com a solitude, seja do ponto de vista de insurgência ou aquiescência, e como tais definições podem apresentar-se de maneiras diversificadas aos olhares.

Os roteiros que gravitam em torno de personagens expostos a situações inóspitas não são raros na produção cinematográfica mundial. Igualmente, no plano literário, impossível cerrar os olhos à aventura de Robinson Crusoe, escrita por Daniel Defoe (1660 – 1731). Contudo, ao reverso do personagem de Defoe, que contava com a companhia do indígena “sexta-feira”, Noland (Hanks), se vê rodeado pela mais absoluta solidão, que é mitigada num aspecto que até mesmo seria expressado em tom cômico nos anos vindouros, ao improvisar a companhia de uma bola de vôlei. Intencional ou algo delirante?

Deparamo-nos com o famoso Wilson, que revela até mesmo um rosto em tom rudimentar, cujas feições são moldadas pelo próprio sangue de Noland em contato com a bola após um acidente em meio àquele ambiente inóspito. Mais uma vez: criatividade ou projeção delirante? Interessante, e um dos inúmeros pontos de destaque do longa, é a capacidade de manter a atenção, “o segurar” do desenrolar do filme apenas pela permanência de Hanks em tela, em bem mais de quarenta minutos nos quais tão somente o desafortunado Noland e, por óbvio, Wilson, que lhe serve de companhia em compenetrados e densos colóquios, são suficientes em manter o suspense e interesse pela trama.

Tom Hanks vinha de uma carreira concisa no cinema, construída a partir de sólidas comédias e incursões dramáticas na década de 80 e início dos anos 90, densificando-se a ponto de tornar sua versatilidade interpretativa uma unanimidade, sendo um dos poucos atores a receber por dois anos consecutivos a estatueta do Oscar, por Philadelphia (1993) e Forrest Gump (1994), feito apenas conquistado anteriormente pelo ator Spencer Tracy. Nesse passo, cientes das particularidades propostas pelo roteiro de Náufrago (Cast Way, 1999), em uma bela direção do cultuado Robert Zemeckis, inúmeras são as interpretações e derivações que se descortinam.

            Para buscar sobreviver à deserta e sufocante ilha, pois tamanha é a solidão de Noland e a ausência de vozes e sons urbanos que até então ele estava acostumado – chegava a ser ensurdecedor ter de escutar apenas os seus pensamentos – vem à tona Wilson para extrapolar os infindáveis e enervantes diálogos internos que o homem mantinha consigo mesmo. Nem seu corpo, nem sua mente são suficientes.

Talvez para não enlouquecer de vez, a bola que pensa e fala, pode ter sido um escape, um mecanismo de defesa que o manteve, de certa maneira, seguro da total perda do contato com a realidade. Embora, algumas vezes nos perguntamos se Noland realmente acreditava naquela espécie de boneco, a exemplo, da separação em alto mar quando ele consegue finalmente sair da ilha com a sua jangada improvisada. Nos emocionamos com seu genuíno sofrimento num choro desesperado ao ver Wilson partindo pelo oceano para nunca mais ser visto. Aos gritos, o homem clama a volta de seu “amigo”. Sem sucesso.

            Enquanto humanos, somos seres gregários. É muito difícil vivermos completamos isolados de tudo e de todos.  Numa época remota da história da civilização, existiram algumas tentativas de isolamento praticadas, muitas vezes por monges, pessoas que desejavam ficar em silêncio, refugiando-se em cavernas ou altos de morros e montanhas, pensadores que queriam fazer uma espécie de “desintoxicação” de pensamentos, amenizando ansiedades, ou ainda, aquietar a mente, fazer jejum, não falar com ninguém, deixar de tomar banho como um ritual para manter o corpo mais natural possível e evitar ao máximo dormir.

Resultado: muitos destes adeptos contraíam doenças por bactérias, desnutrição, comportamentos destoantes de uma certa “normalidade”, discursos messiânicos delirantes, entre outras manifestações curiosas. Outro resultado desta empreitada, gerou efeito contrário. Como a reclusão destas pessoas chamava a atenção de quem as via meditar dia e noite e modificar severamente sua aparência, seja por não se alimentar ou banhar-se, atraíam uma multidão em volta delas, logo, o tal isolamento transformava-se em evento. Dessa forma, os não tão solitários ganhavam fama e passavam a estar em contato novamente com a comunidade.

Noland ansiava por companhia, salvação, afetividade, cuidado, alguém que pudesse olhar para ele, notar sua presença, reconhecê-lo como um ser no mundo que demanda amor e que precisava de reciprocidade. Wilson parece ter cumprido este papel. Ao criar algo “a sua imagem e semelhança”, os olhos de Wilson tornaram-se o espelho que Noland precisava para não perder-se por completo naquele corpo sem borda. É como se aquela bola velha com um rosto o fizesse sujeito novamente. Não só ajudou-o a suportar a si mesmo e impedir um fim proposital, como também impulsionou-o a elaborar meios para sair daquele lugar e retomar a vida na cidade, agora não mais como o simples funcionário da companhia de entregas, mas outra pessoa completamente diferente.

Nova ótica sobre a vida, sobre si, sobre as coisas que o cercam, o lugar onde mora, sobre os relacionamentos, o sexo, o amor, as amizades, o trabalho, com o tempo cronológico (e, porque não dizer, do tempo lógico próprio do inconsciente), com as dores, as doenças, as necessidades naturais do organismo, comer, dormir, defecar e as modificações de seu corpo pelos anos que se passaram. Enfim, uma nova simbolização como ser humano. À sombra dessa provocação, a cada dia, amolda-se uma nova “metamorfose ambulante”.

Uma possível questão suscitada pelo filme pode ser a seguinte: Noland saiu da ilha, mas será que a ilha saiu dele? Ou seja, após anos vivendo em sua própria companhia, é plausível dizer que o retorno à civilização e, consequentemente, às relações interpessoais com todas as suas alegrias, tristezas, frustrações, expectativas, acordos e desacordos, encontros e desencontros, chegadas e partidas, provocariam Noland a regressar a sua singular e subjetiva ilha? Estaria ele realmente livre? Afinal, o que é liberdade, de fato?

Numa cena, vemos que o personagem escolhe dormir no chão, em detrimento da confortável cama de hotel após seu retorno à cidade; mas, qual conforto? E para quem? Afinal, dormir em pedras ou ao relento, talvez fosse muito mais familiar para Noland do que estranho. A maciez se torna dor. A dureza, bálsamo.

Outra questão provocativa seria, se considerarmos a ilha enquanto metáfora, todos nós, em alguma medida, estaríamos ilhados em ideais, crenças, achismos, preconceitos, privações e imposições, repressões… Quem seria o nosso Wilson? E quem construiria a jangada que nos faria sair das nossas próprias ilhas? A pergunta ecoa ao aguardo de possíveis respostas, ou mesmo, de outras indagações.


[1] NO-land, literalmente, “sem terra”.

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem


CONTATOS COM OS AUTORES

Marcus Hemerly

Bruna Rosalem



Voltar: http://www.jornalrol.com.br

Bruna Rosalem

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