Gonçalves Viana: ‘Cálice’
“Gil, então, compôs o refrão, insistente e obsessivo da súplica – retomada do grito de Jesus no momento da agonia, que antecede a Paixão: Pai, afasta de mim esse cálice.“
Era maio de 1973, a Polygram planejava fazer um grande evento, com todos os seus contratados, seria chamado de Phono 73.
O show seria realizado no Anhembi, São Paulo, teria o formato de encontro entre os artistas, isto é, formariam duplas para se apresentarem. Foi dado a Gilberto Gil e Chico Buarque a incumbência de compor e cantar uma música em dupla.
Era Semana Santa e eles (Gil e Chico) combinaram de se encontrarem no sábado, no apartamento do Chico, na Rodrigo de Freitas. Gil queria levar alguma coisa já pronta, para desenvolverem juntos, então, na véspera, começou a dar tratos à bola, para ver o que conseguiria. Como era Sexta-Feira da Paixão, veio-lhe a ideia do calvário e do cálice de Cristo.
Então, seduzido pela imagem do Cristo pregado à cruz, dizendo estar com sede, e que lhe foi servido vinagre, o qual recusou, e desconsolado, questionou: Eli, Eli, lama sabactâni? Isto é, Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? Gil, então, compôs o refrão, insistente e obsessivo da súplica – retomada do grito de Jesus no momento da agonia, que antecede a Paixão:
Pai, afasta de mim esse cálice.
Lembrando que sempre que ia à casa de Chico, este lhe servia uma bebida amarga chamada Fernet – de origem italiana – da qual ele, Chico, gostava muito, assim, com esse mote, fez a primeira estrofe:
Pai, afasta de mim esse cálice,
Pai, afasta de mim esse cálice,
Pai, afasta de mim esse cálice,
De vinho tinto de sangue.
No sábado, quando Chico ofereceu-lhe a bebida, Gil apresentou o que tinha feito, cantarolando o refrão. Quando chegou à palavra cálice, imediatamente Chico intuiu tudo aquilo que a paronomásia podia render, a associação com cale-se, o que levava a um sentido de censura.
Eles trabalharam, então, na musicalização da estrofe que Gil havia feito. Chico acabou fazendo duas estrofes e Gil, mais uma, totalizando assim quatro estrofes, todas com oito versos decassílabos cada. Como não apresentavam um encadeamento linear entre si, decidiram intercalar as estrofes, ficando Gil com a primeira e a terceira, e Chico com a segunda e a quarta.
Muito bem, tudo pronto, foram para o show, onde ficaram sabendo que a música havia sido proibida. Decidiram cantá-la sem a letra, entremeada com palavras desconexas. Desta vez a Censura teve por aliada a própria gravadora que organizava o evento. Quando começaram a cantar, o microfone de Chico foi desligado, ele tentou outro, que também foi desligado – e assim sucessivamente, até que desistiu, dizendo: “Já que não pode, vamos ao que pode”, e cantou Baioque.
Pois sim, para que ninguém ouvisse “cale-se”, a censura levou aquelas três mil pessoas presentes ao show, a verem o “cale-se” dramaticamente concretizado nos microfones desligados.
Quando, em 1978, a canção foi liberada, Chico incluiu-a no seu LP “Chico Buarque”, tendo sofrido censura de lugares antes inimagináveis: bispos da mesma igreja que – através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – criticava a existência, em toda a América Latina, de uma doutrina de segurança nacional que castrava as liberdades individuais, proibiram a execução da música em qualquer evento religioso.
Quinze anos depois, em uma entrevista ao jornal Correio Brasiliense, Chico comentou:
“Às vezes, eu mesmo não sei o que eu quis dizer com algumas metáforas de músicas como ‘Cálice’: por exemplo, disseram que o verso ‘de muito gorda a porca já não anda’, era uma crítica ao Delfim Netto, que era ministro e gordo”. Indagado sobre o real significado, respondeu: “Não faço a menor ideia [risos] esse verso é do Gil”.
Gonçalves Viana – viana.gaparecido@gmail.com
CÁLICE
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na cidade da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver surgir o monstro da lagoa
De muito gorda, a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico do mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
(Chico Buarque / Gilberto Gil)